O evolucionismo de Spencer na América

"Spencer era inglês, mas foi na América que encontra eco para suas idéias, que não eram novas, mas que tinham uma nova roupagem e embasadas no cientificismo, tão ao gosto do naturalismo do século XIX. Incluia em seu pensamento as idéias da economia clássica, os avanços da ciência e o tom piedoso calvinista. Deus era o grande desconhecido e pertencia a um espaço próprio, distinto da ciência. Desta forma, criava um conceito-ônibus, onde o misticismo tinha lugar e não ofendia totalmente o puritanismo em voga.

Proteger o desafortunado era um desperdício, mais do que isso, um erro pelo qual a espécie humana pagaria no longo prazo. Deixar o mais fraco sobreviver seria comprometer o vigor da raça e desestímulo para os mais dotados. A livre iniciativa e a competição eram forças naturais, que deveriam seguir o seu curso na criação da perfeição . Deixar o processo lento e inexorável da evolução seguir o seu curso era, para Spencer, o caminho certo. Qualquer atuação do Estado que desviasse a sociedade desse caminho natural seria inaceitável .

Justifica a diferença através da biologia e das leis da física da conservação de energia. A homogeneidade criava um sistema inerentemente instável, em um processo de evolução e dissolução.

Thus the homogeneous is inherently unstable, since different effects of persistent force [conservation of the energy] upon its various parts must cause differences to arise in their future development. Thus the homogeneous will inevitably develop into the heterogeneous. Here is the key to universal evolution.
(Hofstadter, 1992, p. 37)

Sua defesa desse caminho era messiânica. A humanidade caminharia para a perfeição através da evolução, e no final, a mais completa felicidade seria encontrada. É evidente que qualquer instituição ou força que atuasse para impedir uma jornada certa para a glória de Deus, deveria ser impedida com vigor. Nesse sentido, dedicou sua vida a um combate sem quartel aos poderes do Estado. Mas, curiosamente, aceitava o papel dos sindicatos, como elemento de teste das condições do mercado de trabalho; e a caridade, pois ela advinha da liberdade de escolha do altruísmo de cada um, que não poderia ser cerceada. A livre iniciativa do assistencialismo. O indivíduo poderia corrigir a miséria alheia, mas não o Estado.

Estabelece fases de evolução da sociedade, a fase militante, que descreve com atributos do absolutismo, que é despótico, que submete o indivíduo, estabelece meios compulsórios de cooperação social e é orientado para a guerra e; a fase industrial, onde o contrato substitui o status e a cooperação voluntária no lugar da imposição pela violência. É uma sociedade mais pacífica, onde a segurança, a liberdade e a propriedade imperam.

Seria risível, se não fosse tão sério. Suas idéias invadiram a mentalidade das elites norte-americanas, que nelas encontraram a justificativa para suas riquezas. O seu caráter torpe e rapace é coberto por um véu de grandeza, até de transcendência. Os homens fortes, mesmo que sacrificando os fracos, estariam contribuindo para um futuro grandioso, ao qual todos deveriam se submeter. Não proteger o mais fraco seria fundamental para criar uma sociedade forte e mais perfeita.

Os Barões Ladrões, que faziam jantares grandiosos, onde gastavam milhares de dólares e queimavam notas de cem dólares para acender seus charutos, não podiam encontrar justificativa mais conveniente do que as idéias de Spencer. Melhor ainda que seus descendentes receberiam a graça da hereditariedade de seus atributos, conforme Lamarck. O riquinho seria o ricaço de amanhã, com as habilidades especiais de seus pais. Coisa rídicula, pois a decadência de muitos impérios pessoais está muitas vezes associada aos processos de sucessão familiar e a um herdeiro medíocre ou inapto; ou ao colapso dos tempos.

It is here; we cannot evade it; no substitutes for it have been found; and while the law may sometimes be hard for individual, it is best for the race, because it ensures the survival of the fittest in every department.”
(Andrew Carnegie apud Hofstadter, 1992, p. 46)

A batuta de Spencer foi posteriormente recebida por um sociólogo americano, William Graham Sumner, que defendia com ardor ainda maior as idéias do evolucionismo e que foi o expoente local do Darwnismo Social. Seu horror ao Estado se mesclava à repulsa às idéias socialistas. Desses monstros, surgiria apenas a morte da liberdade.

Let it be understood that we cannot go outside of this alternative: liberty, inequality, survival of the fittest; not-liberty, equality, survival of the unfittest. The former carries society forward and favors all its best members; the latter carries society downwards and favors all its worst members.”
(W.
Graham Sumner In: Hofstadter, 1992, p. 51).

As contribuições de Sumner são na defesa da superioridade da competição como elemento central para o processo de evolução da sociedade e avançam ainda mais como justificativa moral dos barões ladrões.

Their huge fortunes are legitimate wages of superintendence; in the struggle for existence, money is the token of success […]. They get high wages and live in luxury, but the bargain is a good one for society. Millionaires are the bloom of a competitive civilization:” (W. Graham Sumner apud Hofstadter, 1992, p. 58).

O Darwnismo social retorna à idéia de que a desigualdade é elemento fundamental do processo de competição. Não é mais apenas uma questão das leis da conservação de energia, mas de motivação e resultado da competição na sociedade, ‘without inequality the law of survival of the fittest would have no meaning’. Idéia essa que será resgatada com força pelos neoliberais nos anos 1980 em diante.

If liberty prevails, so that all may exert themselves freely in the struggle, the results will certainly not be everywhere alike; those ‘courage, enterprise, good training, intelligence, perseverance’ will come out at the top.”
(W. Graham Sumner apud Hofstadter, 1992, p. 59).

A metáfora da American Beauty prospera e enleva os barões ladrões, perdoados em seu assalto ao Estado Americano no século XIX, suas fraudes contra os concorrentes, pela venda de produtos defeituosos, sua exploração cruel dos trabalhadores e pela traição à pátria. Sumner e outros se apropriaram apenas daquilo que interessava na teoria da evolução de Darwin e desconheceram alguns alertas. O principal deles é que a seleção feita pelos homens gera raças mais fracas que aquelas geradas pela própria natureza, pois submetem a natureza à suas finalidades, que não são necessariamente as mais adequadas.

A natureza deixa viver um animal até que, segundo as provas atuais, este se torne incapaz de executar o trabalho requerido para um determinado fim; o homem, ao contrário, julga somente com seus olhos e não sabe que os nervos, os músculos, as artérias são desenvolvidos em proporção às mudanças da forma externa.” (Darwin, 1996, p. 27).

---
É isso!

Fonte:
Antônio José Corrêa do Prado: “Neoliberalismo e Desenvolvimento: a desconexão trágica”. (Tese de Doutorado apresentada ao Instituto de Economia da Unicamp, para a obtenção do título de Doutor em Ciências Econômicas, sob orientação do Prof. Dr. Jorge Eduardo Levi Mattoso). UNICAMP. Campinas, 2007.

Nota:

O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.

Sobre o "berço da humanidade"

"Em seu livro “A Origem do Homem e a Seleção Sexual”, Charles Darwin especula da seguinte forma acerca das razões pelas quais a África, na sua opinião, ter sido o berço da humanidade:

“Naturalmen­te somos levados a perguntar-nos onde teria sido o lugar de origem do homem naquela fase da evolução em que os nos­sos antepassados se diversificam do tronco dos catarríneos. O fato de eles pertencerem a este tronco demonstra claramen­te que habitavam o velho mundo, mas não a Austrália e tam­pouco alguma ilha oceânica, como podemos deduzir das leis da distribuição geográfica. Em toda região grande do mundo os mamíferos viventes estão em estreita relação com as espé­cies extintas da mesma região. Portanto, é provável que a África fosse inicialmente habitada por símios que estão extin­tos, estreitamente afins ao gorila e ao chimpanzé. Visto que agora estas duas espécies estão mais próximas ao homem, é um tanto quanto mais provável que os nossos primeiros an­tepassados habitassem o continente africano e não outro lu­gar” (Hemus Editora, p. 183).

Sobre exatamente isto, escreve Richard Leakey em “A Origem da Espécie Humana”:

“Devemos lembrar que, quando Darwin escreveu estas palavras, nenhum fóssil humano primordial tinha sido encontrado em qualquer lugar; sua conclusão era inteiramente baseada em teorias. Na época de Darwin, os únicos fósseis humanos conhecidos eram do homem de Neanderthal, na Europa, e estes representam um estágio relativamente tardio da evolução humana.
Os antropólogos não gostaram nada da sugestão de Darwin, porque a África tropical era olhada com desdém colonialista: o Continente Negro não era visto como um lugar apropriado para a origem de uma criatura tão nobre como o Homo sapiens. Quando mais fósseis humanos começaram a ser descobertos na Europa e na Ásia na virada do século, mais zombarias foram lançadas sobre a idéia de uma origem africana, Esta atitude prevaleceu por décadas. Em 1931, quando meu pai disse aos seus mentores na Universidade de Cambridge que planejava procurar as origens humanas no leste da África, recebeu uma pressão enorme para em vez disto concentrar sua atenção sobre a Ásia. A convicção de Louis Leakey era parcialmente baseada no argumento de Darwin e parcialmente, sem dúvida alguma, no fato de que ele havia nascido e sido criado no Quênia. Ele ignorou o conselho dos estudiosos de Cambridge e conseguiu estabelecer a África Oriental como uma região vital na história da nossa evolução primordial. A veemência do sentimento anti-África dos antropólogos parece agora estranha para nós, dado o vasto número de fósseis humanos primordiais que tem sido recuperado neste continente nos anos recentes. O episódio é também um lembrete de que os cientistas são muitas vezes levados tanto pela emoção quanto pela razão” (Editora Rocco, p. 16,17).

A frase de Leakey “Os antropólogos não gostaram nada da sugestão de Darwin, porque a África tropical era olhada com desdém colonialista: o Continente Negro não era visto como um lugar apropriado para a origem de uma criatura tão nobre como o Homo sapiens” me parece uma jibóica contradição, isto levando em conta os interesses ideológicos dos antigos darwinistas sociais. Ora, o “progresso” era marca registrada do pensamento racista dos antropólogos e filósofos evolucionistas nos primórdios do darwinismo. Sendo assim, a idéia de que o homem teve sua origem na África, em vez de chocar-se com seus ideais de superioridade racial, favoreceu enormemente esses sentimentos preconceituosos, já que corroborava em cheio o conceito de “progresso da civilização” ou "evolução cultural dos povos". O homem, saindo de sua ínfima origem (a África) ascendeu rumo à plena civilização (a Europa).

Isso me fez lembrar de um antigo documentário passado na TV Cultura sobre o apartheid. Quando perguntado por um repórter sobre a revolta do povo banto, um inglês “branquinho e engomado” obstou-o alegando que sequer ele “havia descido da árvore”. Ou seja, para o pensamento racista, se baseado no ideal de evolução como progresso, é muito mais interessante que o homem tenha sua origem na África, em vez da Ásia ou Caculé.

É isso!

O "alvoroço" dos dentes

Alguns fósseis dentários tem causado um verdadeiro alvoroço tanto para darwinistas quanto para seus “inimigos mortais”, ou seja, os criacionistas. Do “lado de cá” o ânimo justifica-se pelo fato de ser a Ásia a região apontada pela Bíblia como aquela onde teria se originado o homem; do “lado de lá” o desânimo é corroborado pela possibilidade de declive de mais um alicerçado dogma evolutivo.

Segundo pesquisas publicadas no “
American Journal of Physical Anthropology” e realizadas por pesquisadores da
Universidade de Tel Aviv, foram encontrados na caverna de Qesem, em Israel, dentes humanos datados de aproximadamente 400.000 anos. Até o momento, os restos de homo sapiens mais antigos de que se tinham notícia datavam de 200.000 anos e haviam sido descobertos na Àfrica. O Site BBC deu a seguinte manchete: “Fóssil de dentes em Israel pode mudar teoria da evolução humana”, afirmando que: ‘“Esta conclusão pode ser de grande importância, porque pode ser a primeira evidência para mudar alguns dos paradigmas que usamos em termos da evolução humana”.

Bom. Como não sou darwinista nem faço uso de livros sagrados como “um manual de ciências exatas”, só posso rir um pouco de tudo isso. ((rs)) Sim, pois, pouco me importa se o homem se originou na África, se na Ásia ou se em Itapipoca. Este tipo de especulação, embora interessante e lucrativa, não é essencial para me sentir gente, e isso me basta!

É isso!

O egoísmo dos genes

"Assim, a dinâmica Darwinista, vai tentar ser melhor explicitada, através da idéia perturbadora e desconfortável, do egoísmo do gene que dominou as discussões sobre o assunto à partir da década de 1970. Este pensamento sobre o gene surgiu na biologia como conseqüência do trabalho de dois naturalistas, um americano e o outro inglês, respectivamente George Willians e William Hamilton. Mas ela foi mais amplamente divulgada e associada a outro pesquisador: Richard Dawkins, famoso biólogo evolucionário e professor da Universidade de Oxford e um dos nomes mais conhecidos do meio científico contemporâneo e sarcasticamente citado por vários de seus colegas como sendo mais darwiniano que o próprio Darwin. A teoria do gene egoísta, como é conhecida, é uma teoria científica genecêntrica que tenta explicar como ocorreu a evolução das moléculas e como estas evoluíram de modo a formar todos os seres vivos existentes hoje. No entanto, essa teoria possui também um outro significado importantíssimo. Ela tenta explicar uma das questões mais intrigantes e complexas da nossa existência, o comportamento humano, que é reduzido a uma condição simplista a partir do momento que Dawkins considera o ser humano como sendo apenas uma máquina de sobrevivência para nossos genes.

É em 1976 que Dawkins publica o livro título de sua teoria chamado O Gene Egoísta. Segundo Horgan, ele utiliza o darwinismo como uma arma imbatível com a qual ele ataca todas as idéias que vão contra sua visão materialista, reducionista e não mística da vida (HORGAN, 1999:150). Esse livro popularizou a visão crescente na biologia que a seleção natural se processa não no interesse das espécies ou do grupo, nem mesmo do indivíduo, mas no interesse dos genes. Embora a seleção tome partido amplamente no nível do indivíduo, os genes são os verdadeiros replicadores e é a competição deles que dirige a evolução do design biológico. O autor define o gene como sendo uma parte qualquer do material cromossômico que é capaz de durar um número determinado de gerações de forma a servir como uma unidade de seleção natural.

Dawkins, sugere que toda a vida, em todo lugar no universo, deve evoluir pela sobrevivência diferencial de entidades auto-replicadoras ligeiramente imprecisas; ele os chamou de replicadores (DAWKINS, 2001:33). Além disso, esses replicadores automaticamente se juntam em grupos para criar sistemas, ou máquinas, que os carregam por aí e trabalham em favor de sua replicação continuada. Essas máquinas de sobrevivência, ou veículos, adivinhem, são nossos corpos familiares, assim como os dos gatos, do repolho e todos os outros, que foram criados para carregar e proteger os genes dentro deles.

Uma das propriedades mais surpreendentes do comportamento de máquinas de sobrevivência é sua aparente intencionalidade. Com isto não quero dizer apenas que este comportamento parece estar corretamente calculado para ajudar os genes do animal a sobreviver, embora, evidentemente, ele esteja". (Idem:73)

Ele argumenta que a intencionalidade ou o desejo (animal e humano) são um grande faceta dos genes para desenvolver o que condicionamos chamar de consciência, e ele segue com a seguinte proposição.

“Não sou filósofo o suficiente para discutir o que isto significa, mas felizmente não importa para nossos propósitos aqui porque é fácil falar sobre máquinas que se comportam como se fossem motivadas por uma finalidade e deixar em aberto a questão sobre se elas realmente são conscientes. Estas máquinas são, basicamente, muito simples e os princípios do comportamento intelectual inconsciente estão entre os lugares-comuns da Engenharia.”
(Idem)

No último capítulo do livro ele sugere que o darwinismo é uma teoria muito grande para ser confinada no restrito contexto do gene. Então ele faz uma pergunta óbvia e provocativa. Existem outros replicadores em nosso planeta? Segundo ele, sim.

Quase tudo que é incomum no homem pode ser resumido em uma palavra: ‘cultura’. Não usei a palavra em um sentido esnobe, mas como os cientistas a usam. A transmissão cultural é análoga à transmissão genética no sentido de que embora seja basicamente conservadora, pode originar um tipo de evolução.” (Idem: 211)

Deste modo ele considera a cultura um outro replicador, uma unidade de imitação. Ele deu a ele o nome de meme, e como exemplos de memes sugeriu músicas, idéias, slogans, modas de roupas, modos de fazer vasos ou de construir arcos. Da mesma forma que os genes são passados à frente via espermatozóide, os memes armazenados nos cérebros humanos, podem ser passados adiante através da imitação.

“…os memes devem ser considerados como estruturas vivas, não apenas metafórica mas tecnicamente. Quando você planta um meme fértil em minha mente, você literalmente parasita meu cérebro, transformando-o num veículo para a propagação do meme, exatamente como um vírus pode parasitar o mecanismo genético de uma célula hospedeira.” (HUMPHREY apud DAWKINS, 2001:214)

Ele ainda propõe que, uma vez que um novo replicador surja, ele tenderá a ocupar mais espaço e a começar um novo tipo de evolução. Acima de tudo ele tratou os memes como replicadores diretos, castrando aqueles entre seus colegas que sempre tendiam a retornar à vantagem biológica para responder a perguntas sobre o comportamento humano. Deste modo ele afirma que nós temos nossos cérebros por razões biológicas (genéticas) mas agora que nós os temos, um novo replicador foi solto e ele não necessita ser subserviente ao antigo. Existe uma enorme variedade nos comportamentos que os humanos produzem, esses comportamentos são copiados, mais ou menos precisamente por outros seres humanos, e nem todas as cópias sobrevivem.

O meme, dentro desta perspectiva, se encaixa perfeitamente com o esquema de hereditariedade, variação e seleção. Podemos pensar em melodias, por exemplo, aonde milhões de variantes são cantadas por milhões de pessoas. Apenas algumas são passadas adiante e repetidas e até mesmo algumas chegam até as paradas pop ou às coleções de clássicos. Em outras palavras, a evolução memética pode agora prosseguir sem se preocupar com seus efeitos nos gene (Id.:215). Assim, tal como a evolução biológica é guiada pela sobrevivência dos genes mais adaptados em um meio, a evolução cultural pode ser guiada pelos memes mais bem sucedidos e melhor adaptados. Esta é uma idéia que levanta muitas críticas diretas a esta concepção. Lewontin, chama a atenção para o quanto essa analogia é oculta, mencionando as óbvias diferenças entre material genético e idéias (LEWONTIN, 2001). De acordo com ele, o fato de que os vários indivíduos de uma espécie competem por recursos, está na base dos processos de sobrevivência diferencial da seleção natural, enquanto que, por mais que se possa falar em idéias que competem entre si, não há nada nem remotamente parecido com “seleção natural” nesta competição (Idem).

O que mais impressiona na descrição narrada acima é a capacidade que Dawkins tem de transformar uma metáfora, os memes, numa entidade viva e completamente independente de todo e qualquer controle. É irresistivelmente difícil não pensar nos memes de forma caricatural, como se eles fossem um Alien ou qualquer outro personagem parasita de ficção científica. A idéia em si, enquanto uma metáfora parece até mesmo genial, mas quando ele afirma a existência real de um meme, isso beira a ficção científica e é tão metafísico quanto discursos extra-científicos, como o religioso, dos quais Dawkins explicitamente tenta se dissociar.

Esta visão reducionista e mecanicista do Ser humano como uma máquina de transmissão de genes, e/ou de memes, é um dos pontos fundamentais do chamado neo darwinismo. Para além da teoria do gene egoísta aparece a chamada Sociobiologia, surgida na década de 70 e denunciada como uma das novas roupagens da ideologia do eugenismo, movimento fundado por um primo de Darwin, Francis Galton. Lembremos que a eugenia se propagou rapidamente na época de seu surgimento, fazendo parte de várias ideologias médicas e de saúde pública da primeira metade do século 20, além da sua conhecida influência em movimentos racistas e fascistas, como o nazismo. Associado a este lado existe também todo um terreno de conhecimentos ditos científicos, como o da frenologia, o das tipologias criminosas de Lombroso, entre outros."

---
É isso!


Fonte:
Mauro Fraga Paiva: “Nem tudo que se diz é verdade e nem tudo que é verdade é dito: Uma análise crítica da difusão do Pensamento Genético e Evolucionário na Contemporaneidade”. (Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Doutor em Saúde Coletiva, Curso de Pósgraduação em Saúde Coletiva – área de concentração em Política, Planejamento e Administração em Saúde do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Orientador: Kenneth Rochel Camargo Júnior). Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2009.

Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.

As críticas de Gould ao gene-centrismo de Dawkins

"Gould (2002) sistematiza as críticas ao selecionismo gênico em uma série de sete argumentos. O primeiro é relativo à distinção entre replicadores e interagentes, conceitos que a partir de sua definição por Hull servem de base para a discussão sobre ‘níveis de seleção’. Gould afirma que esta distinção é útil, porém foi tratada pelos selecionistas gênicos, em especial por Williams e Dawkins, como uma dualidade na qual os replicadores seriam os únicos agentes ativos e funcionais, e os interagentes sendo meros repositórios passivos dos primeiros. Porém, este seria um uso indevido, pois a proposta de Hull para a análise da seleção natural envolve tanto replicadores como interagentes em “um processo no qual extinção e proliferação diferencial de interagentes causa a perpetuação diferencial dos replicadores que os produzem” (HULL, 1980, p. 318).

O segundo argumento aponta que a concepção de ‘replicação fiel’ como o critério central da visão gene-cêntrica é um equívoco. Dawkins, assim como Williams, defende que os organismos não podem ser considerados como a unidade fundamental de seleção devido à desagregação que sofrem durante o processo de reprodução. Os genes, ao contrário, teriam a propriedade de transmitirem cópias fiéis às gerações seguintes, podendo assim ser considerados como unidades de seleção. Para Dawkins, o organismo seria uma unidade de função e o gene a única unidade de seleção. Gould critica os critérios de fidelidade, imortalidade e prioridade ancestral, estes teriam sido escolhidos por sua equivalência com virtudes culturais e não por serem critérios necessários para o debate sobre níveis de seleção. Além disto, Dawkins estaria confundindo o fato dos genes terem surgido anteriormente aos organismos na historia biológica com a suposição de que isto levaria à dominação atual dos primeiros sobre os posteriores, ou seja, para Gould, anterioridade histórica não é o mesmo que dominação atual. Para Gould, o conceito de emergência desmonta a argumentação de Dawkins, visto que o surgimento de unidades de mais alto nível envolve a manifestação de propriedades emergentes, que não podem ser reduzidas às interações entre as unidades de mais baixo nível que deram origem a esta. E assim: “Unidades de mais alto nível se tornam, por definição, um agente independente em seu próprio direito, e não um “escravo” passivo de seus constituintes controladores”. (GOULD, 2002, p. 618).

O terceiro argumento é uma rejeição da replicação como critério de agência, considerando que é um erro identificar a medição de um atributo hereditário como equivalente ao mecanismo que produz sucesso reprodutivo diferencial. Este argumento reflete uma das críticas mais comuns à teoria gene-cêntrica, confundir ’contabilidade’ [bookkeeping] com causalidade. Para Gould, esta confusão é tão comum devido a ‘persistência’ e ‘replicação’ serem critérios necessários para a definição de uma entidade biológica como um indivíduo que pode evoluir. Esta seria uma falácia que surge quando não se distingue entre condições necessárias e condições suficientes. As condições de hereditariedade e persistência são necessárias para um indivíduo ser considerado uma entidade evolutiva, mas não são suficientes, sendo necessário que este também atue de forma coesa e direta com o ambiente. Os genes são claros representantes das duas primeiras condições, mas, em geral, não manifestam este último critério. Até aqui a argumentação de Gould é a que encontramos em vários artigos, tanto dele como de outros críticos do gene-centrismo, mas ele agrega outro ponto, aplicando alguns conceitos tal como propostos por Darwin. Assim, aplica a metáfora da seleção natural agindo como uma peneira sobre diversos indivíduos de uma dada população. Esta peneira ao ser sacudida pelo ambiente manteria alguns indivíduos e perderia outros. A permanência dependeria de propriedades emergentes dos indivíduos, que passariam as mesmas às futuras gerações, as quais, por sua vez, seriam submetidas ao mesmo processo. Os indivíduos não precisariam gerar cópias fiéis de si mesmos, mas somente ser capazes de aumentar a representatividade de sua contribuição hereditária nas próximas gerações quando considerados em relação a outros indivíduos. Darwin percebia os organismos individuais como unidades de seleção e, por desconhecer os mecanismos de herança genética, aceitava a possibilidade de herança por mistura de características. Este fato leva Gould a concluir que o conceito de replicação fiel não é necessário para a concepção de seleção natural. Darwin entendia o critério de agência como relativo a unidades de seleção que interagem com o ambiente e se reproduzem diferencialmente por conta desta interação. Segundo Gould, este é o critério que devemos considerar como válido.

O quarto argumento afirma que o critério próprio para identificação de unidades de seleção é a interação, o que não está representado na teoria gene-cêntrica. Esta afirmação é o ponto a partida para Gould (2002, p. 623) definir pluri-produção [plurifaction] como: “o aumento relativo da representação de um indivíduo na hereditariedade das gerações suficientes” e caracterizar “seleção como ocorrendo quando a pluri-produção resulta de uma interação causal entre traços de um indivíduo evolutivo (uma unidade de seleção) e o ambiente de forma que isto aumente o sucesso reprodutivo diferencial do indivíduo”.

O quinto argumento é relativo à incoerência interna do selecionismo gênico, sendo desenvolvido a partir da análise textual de documentos relevantes desta teoria. Gould inicia sua argumentação retomando a proposta de Aristóteles na qual a causalidade se apresentava em quatro aspectos: causa material, causa eficiente, causa formal e causa final. Esta classificação não é comum hoje em dia, mas podemos considerar que a definição de ‘causa’ na ciência atual é análoga ao que era a causa eficiente aristotélica. Obviamente as bases materiais e formais continuam a ser consideradas relevantes, porém não como causas, mas como condições ou restrições operacionais. O conceito de causa final foi abandonado . Nenhum dos argumentos seria sustentável, não representando muito mais do que um jogo de linguagem. Os selecionistas gênicos não reconheceriam que a existência de propriedades emergentes destrói sua teoria, somente admitiriam que as propriedades emergentes pudessem eventualmente significar um problema, mas buscariam a solução em analogias que evitassem a questão. Além disso, sua aplicação do critério ceteris paribus ocorreria de maneira indevida. Este critério é válido para um uso heurístico e como uma ferramenta experimental quando efetivamente se podem manter vários fatores constantes enquanto apenas um se altera. A realidade biológica dos níveis de seleção não se enquadra nestes usos, assim, o que os selecionistas gênicos têm feito é extrapolar o domínio ao tentar aplicar esta ferramenta para defender o gene como unidade de seleção. após a revolução cartesiana. O erro do selecionismo gênico seria considerar os genes como causas eficientes da seleção natural, quando estes seriam, mais corretamente, condições materiais ou formais. Os selecionistas gênicos teriam confundido a importância que os genes efetivamente têm como causa material com a proposta de que os mesmos seriam as causas eficientes. Para Gould (2002, p. 627): “Genes representam o produto, não o agente – o material de continuidade, não a causa do resultado”. Portanto, os argumentos dos selecionistas gênicos a favor do gene como unidade de seleção estariam baseados em dois pontos: negar a existência de propriedades emergentes dos organismos e esquivar-se atrás do conceito de ceteris paribus
.

O sexto argumento retoma a relação indevida entre contabilidade [bookkeeping] e causalidade a partir de outros três pontos. O primeiro é o reducionismo presente na tradição científica ocidental. Dawkins adotaria esta busca por explicar os fenômenos de larga escala a partir de seus elementos constituintes, como é o caso quando assume a necessidade de explicar todo o mundo biológico a partir de sua estrutura básica: o gene. O segundo ponto está ligado ao próprio sucesso da Síntese Moderna e da genética de populações, que conduz ao que Gould considera uma falácia: supor que o sucesso prático de uma matéria equivale a uma explicação das estruturas da natureza. O terceiro ponto, o mais importante, pelo qual se confunde ‘contabilidade’ e causalidade está conectado ao motivo que levou os pesquisadores a escolherem o gene como unidade de registro de mudanças evolutivas: a assimetria intrínseca do fluxo causal em hierarquias de inclusão. O mundo biológico está organizado em uma hierarquia direcional, ou seja, na qual o fluxo de influência entre os diversos níveis é relevante. As mudanças nos níveis mais baixos desta hierarquia podem ou não causar efeitos nos níveis mais altos (causação ascendente), mas toda a mudança em um nível mais alto altera algo nos níveis mais baixos (causação descendente). Isto posto, torna-se claro o motivo pelo qual o gene foi escolhido como a melhor unidade de registro: genes são as unidades que mantêm o registro mais amplo de todas as mudanças evolutivas, não importando em que nível as mesmas ocorram. Com isto, Gould pretende afastar os motivos alegados pelos selecionistas gênicos para a escolha do gene como a unidade fundamental. O gene não teria sido escolhido por ser o elemento básico (a falácia reducionista), nem por ser o agente causal (a falácia selecionista), nem por ser replicador fiel, mas por ser boa testemunha das mudanças evolutivas.

O sétimo e último argumento de Gould busca mostrar que mesmo os selecionistas gênicos têm alterado sua posição de defesa estrita do gene como unidade de seleção para uma posição convencionalista, o que seria um indicativo da incoerência da teoria."

---
É isso!

Fonte:
Maria Rita Spina Bueno: “Níveis de Seleção: uma avaliação a partir da teoria do “gene egoísta”. (Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, para obtenção do título de Mestre em Filosofia sob a orientação do Prof. Dr. Osvaldo Pessoa Jr). Universidade de São Paulo. São Paulo, 2008.

Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.

O grande missão de Francis Galton

"O objetivo de Hereditary Genius é expresso de modo claro e direto na primeira frase do Capítulo Introdutório:

Proponho-me a demonstrar, neste livro, que as habilidades naturais de um homem derivam da hereditariedade e estão sujeitas exatamente às mesmas limitações da forma e das características físicas de todo o mundo orgânico
(Galton, 1869, p. 1)

Galton acredita que as variações observadas nos seres humanos são intelectuais e psicológicas por natureza. Com base em sua própria experiência, observara que, apesar de ter nascido em uma família estruturada, qu e lhe forneceu um rico ambiente intelectual, e de seu alto grau de motivação para se formar com honras em Cambridge, ele não fora capaz de superar o desempenho de vários de seus colegas. Assim sendo, o melhor desempenho daqueles que o suplantaram poderia se dever a uma “habilidade natural”. Também observara a presença de eminências intelectuais em determinadas famílias, inclusive na sua própria – Erasmus e Charles Darwin, por exemplo, além de outros menos conhecidos. Galton pesquisa o histórico das famílias e conta quantas eminências existem em cada uma; constata que as famílias com eminências representam aproximadamente uma em cada 4000 famílias da população normal. Examina então as relações familiares entre os eminentes e verifica que cerca de 10% deles tinham pelo menos um parente que poderia ser considerado “eminência”. Mesmo levando em conta o fato de cada pessoa ter vários parentes, os valores observados excediam, em muito, o que se poderia explicar pelo acaso. A evidência concreta fora revelada, e com Hereditary Genius Galton pretende provar que era hereditária.

Fancher (1979) faz uma análise cuidadosa da argumentação de Galton nessa obra. Os argumentos seguem três linhas: a distribuição normal, o pedigree dos gênios e os estudos de parentes adotados e biológicos.

Na primeira linha de argumentação, Galton mais uma vez volta-se para Cambridge e estuda os resultados em dois exames de distinção em matemática sucessivos. Observa qu e a distribuição dos resultados se aproximava muito da distribuição de medidas físicas da população, como altura e peso, observada pelo estatístico belga Adolphe Quetelet (1796 - 1874): a distribuição normal ou curva do sino. Esse dado é compatível com sua hipótese, embora não seja suficiente para comprová-la.

A segunda linha analisa a árvore genealógica de pessoas eminentes de doze grupos (juízes da Inglaterra, estadistas, militares de destaque, comandantes, escritores, cientistas, poetas, músicos, teólogos, pintores, acadêmicos, remadores, lutadores). Galton identifica dois padrões: (1) como ocorre com as características físicas, a tendência de laços de sangue próximos entre eminentes parentes era maior do que a tendência de laços distantes; as relações de primeiro grau (filhos ou irmãos) eram 4 vezes mais frequentes do que as de segundo grau (avós, netos, sobrinhos, tios), que por sua vez eram quatro vezes mais frequentes que as de terceiro grau (bisavós, primos etc); mesmo as relações de terceiro grau ocorriam com maior frequência do que seria esperado pelo acaso; (2) existe uma tendência imperfeita, mas evidente, de parentes se destacarem nas mesmas áreas; geralmente escritores eminentes tinham um avô eminente também escritor, embora a frequência de outras ocupações também aparecesse em uma proporção superior à prevista pelo acaso. Galton argumenta que, se o requisito “habilidade natural” para cada campo específico for uma combinação complexa de características físicas, mentais e emocionais separadas e parcialmente herdadas, a prole de um eminente herdaria certa proporção das qualidades necessárias para a eminência no mesmo campo, mas não necessariamente o conjunto inteiro.

Embora o mesmo padrão pudesse ser explicado pelo ambiente compartilhado pela mesma família, Galton procura reduzir a importância desse fator, embora o aborde mais diretamente em sua terceira linha de argumentação.

A terceira linha investiga as relações de eminências com seus parentes adotados. Observa que os papas católicos tinham o costume de adotar “sobrinhos”. Pondera que esses meninos partilhavam do mesmo ambiente de seus protetores, mas sem as vantagens biológicas. Opta então por comparar a frequência de eminências nesse grupo com a observada no grupo de filhos criados por pais biológicos. Galton reconhece que seu estudo não é rigoroso, mas acredita ser suficiente para corroborar sua hipótese, afirmando que a combinação de um filho capacitado e um genitor capacitado não é observada nas relações “protegido” e “protetor” entre os eclesiásticos de Roma. Ao contrário da análise cuidadosa observada anteriormente, o estudo dos casos de adoção foi feito em uma amostra no mínimo atípica, e sem o rigor demonstrado por Galton nas outras linhas de argumentação.

Embora as três linhas de evidência defendidas em Hereditary Genius sejam coerentes com a tese da hereditariedade, elas não a comprovam conclusivamente. Entretanto, Galton soube apresentá-las de modo claro, fundamentando-as com números e gráficos. Isso lhes conferiu uma aparência científica e credibilidade suficiente para que tanto seus aliados quanto seus oponentes as levassem a sério.

Mas Hereditary Genius também deixa evidente um projeto maior que ocupará a mente de Galton até o final de sua vida: a aplicação prática de sua tese em um projeto utópico de aperfeiçoamento da espécie. O Capítulo Introdutório da obra explicita esse projeto de modo inequívoco:

Assim como é fácil [...] obter, por meio de uma seleção cuidadosa, uma linhagem de cães ou cavalos dotados de talentos peculiares como correr ou fazer outra coisa qualquer, também seria bastante viável produzir uma raça de homens altamente dotados por meio de casamentos criteriosos durante várias gerações consecutivas
(Galton, 1869, p. 1)

Embora não fossem imediatamente visíveis para o público, dois movimentos internos de Galton se desenvolviam com intensidade crescente: o inesgotável apetite pelos números e a seleção um tanto arbitrária de trechos da obra de Darwin que ele recriava em formas novas e radicais (Brookes, 2004). Darwin usara a domesticação de animais para ilustrar como a evolução pela seleção natural produz mudanças na forma e nas características das espécies; o controle sobre os indivíduos que poderão se reproduzir por muitas gerações permite assegurar a transmissão de determinadas características desejáveis e a extinção das indesejáveis. Ora, pondera Galton, se os seres humanos, por serem mais fracos, precisam da inteligência para sobreviver, os mais inteligentes naturalmente atingirão o topo da sociedade. Começa então a imaginar o seu próprio experimento: o controle da reprodução dos seres humanos para a depuração da espécie em termos d e inteligência. Seu objetivo é aplicar a ideia da adaptação e da sobrevivência do mais apto à depuração da espécie humana para a qual cunha o termo eugenia: a possibilidade de aperfeiçoamento da raça humana. Considera, como critério, aqueles que se destacaram nos empreendimentos intelectuais e o povo “mais civilizado” – como não poderia deixar de ser, os ingleses. A esse projeto Galton se dedicará pelo resto de sua vida: praticamente tudo o que virá a fazer, a partir de então, estará relacionado a ele.

Como típico representante da alta classe vitoriana, Galton, assim como a maioria dos membros de sua classe na nação mais poderosa do planeta, vê com desprezo os que não lhe são igu ais: as mulheres, os negros, os pobres. Supunha que as mulheres eram menos inteligentes que os homens (Goodwin, 2005; White, 2006).
Em sua obra Inquiries into Human Faculty and its Development (1883, p. 20-21), afirma:

Identifiquei, como regra, que os homens têm poderes de discriminação mais refinados do que os das mulheres, e a experiência nos negócios da vida parece confirmar isso [...] As mulheres raramente distinguem os méritos do vinho à mesa, e embora o costume lhes permita presidir o desjejum, no geral os homens consideram que estão muito longe de ser boas preparadoras de chá e café.

Considera, ainda, que as pessoas retardadas têm deficiências sensoriais e intelectuais. Na mesma obra, declara: “A faculdade de discriminação dos idiotas é curiosamente baixa; eles mal podem distinguir frio e calor; e seu senso de dor é tão obtuso que alguns dos mais parvos parecem mal saber do que se trata.” (Galton, 1883, p. 20)

Para criar uma sociedade eugenista, Galton acredita que seria necessário incentivar o casamento dos rapazes mais aptos com as moças mais aptas, e levá-los a uma taxa de procriação superior à dos casais cujas habilidades fossem inferiores. Porém, para levar adiante seu projeto, é necessário resolver um problema: como avaliar os mais aptos?

Dedica atenção intermitente ao assunto, até pelo menos 1884, quando monta o Laboratório Antropométrico para a Feira Internacional de Saúde de Londres, posteriormente transferido para um museu onde coletaria dados durante dez anos. Os visitantes eram submetidos aos instrumentos de medição ou testes elaborados por ele. Eram medições físicas, como o tamanho da cabeça, e o desempenho em avaliações de tempo de reação e acuidade sensorial. Para Galton, são testes mentais que medem aspectos da inteligência. O argumento subjacente é: o indivíduo que tem habilidades intelectuais mais diferenciadas tem necessariamente um sistema nervoso e um cérebro mais eficientes e potentes; o poder do cérebro de uma pessoa provavelmente está relacionado ao tamanho do cérebro; portanto, medir a cabeça é o teste de inteligência mais simples, pois reflete o tamanho do cérebro contido e, assim sendo, o grau de diferenciação das habilidades intelectuais do indivíduo medido. Acredita também que a eficiência neurológica está relacionada à velocidade com que a pessoa responde aos objetos do ambiente, o que justifica o uso de testes de tempo de reação. Assim Galton defende a sua posição:

As únicas informações do mundo externo que nos alcançam passam pela via dos sentidos; quanto mais os nossos sentidos percebem as diferenças, mais amplo é o campo em que nosso julgamento e nossa inteligência podem atuar.
(1883, p.19)

Para avaliar esse aspecto e as habilidades relativas dos indivíduos, lança mão de tarefas que envolvem a discriminação de pesos e cores ou a capacidade de ouvir tons agudos. Ao contrário de outros pesquisadores, como Fechner e Wundt, que haviam medido fenômenos desse tipo com o objetivo de estabelecer princípios gerais, para Galton a finalidade é avaliar diferenças individuais, com ênfase na variabilidade e na adaptação. Coerente com sua paixão pelos números e p ela experimentação, Galton passa a “medir” características que lhe possibilitem comprovar as diferenças que supõe existir entre raças, classes sociais e gêneros.


Segundo Fancher,

[Galton] eleva o estudo científico das diferenças individuais ao nível de uma especialização psicológica relevante, com importantes implicações sociais. Muitas das questões que ele levantou mais de 100 anos preocupam os psicólogos até hoje.
(1979, p. 219)

É assim que se desenvolve a idéia inédita de que testes podem ser usados para medir diferenças psicológicas entre as pessoas, particularmente a inteligência. A idéia de teste de inteligência nasce, assim, em um contexto eugenista, e é apresentada como parte de um importante projeto científico que vale a pena levar adiante. Galton não chega a criar testes psicológicos de fato, mas prepara o terreno para a mensuração das funções psicológicas. Embora seu interesse se volte para as diferenças individuais, os indivíduos em sua singularidade jamais o interessaram. Porém, como afirma White (2006, p. 25), “Galton foi o primeiro da fila. Se pudermos entender mais claramente o que o motivou, estaremos mais preparados para entender os outros.”

---
É isso!

Fonte:
Maria Cecilia de Vilhena Moraes Silva: “A compreensão da medida e a medida da compreensão: Origens e transformações dos testes psicológicos”. (Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Psicologia Social: História da Psicologia, sob a orientação da Profa. Dra. Maria do Carmo Guedes). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP . São Paulo, 2010.

Nota:
O título e a imagem inseridos no texto não se incluem na referida tese.

A face oculta da genética: o determinismo genético e a eugenia

“O Dogma Central citado no capítulo anterior - “o DNA faz o RNA, o RNA faz as proteínas e as proteínas fazem a gente” (CAPRA, 2002, p. 179) – acaba por acarretar numa simplificação extremamente perigosa levando a afirmação de que “os genes determinam o comportamento”. Ou seja, reduz-se o ser humano ao seu aspecto genético, isto é, as suas informações/características genéticas.

Essa idéia é chamada de determinismo genético, a qual propugna que quando se conhecer exatamente a seqüência de bases genéticas do DNA se saberá, por via de conseqüência, como os genes causam diversas doenças, o comportamento violento, a inteligência, etc.

Comportamentos considerados “anti-sociais”, ou seja, reprováveis pela “maioria” da sociedade serão imputados às características genéticas, dentre eles, o homossexualismo, o alcoolismo, a assim chamada índole criminosa ou violenta, entre outras. E, por outro lado, algumas características ou comportamentos desejáveis ou favoráveis, por assim dizer, também serão atribuídos às características genéticas, dentre elas, e, em especial, a inteligência.

Insta observar que o determinismo “induz ao abandono de uma leitura unitária do ser humano e impõe ao intérprete uma visão cindida e despersonalizada do homem” (SANTOS, 2001, p. 321), reduzindo-o apenas às suas características biológicas.

Acrescenta-se ainda que o caminho que liga as idéias do determinismo genético à eugenia é bastante estreito, senão inexistente, como se pôde constatar no decorrer da história. A conseqüência “lógica” é que tais idéias deterministas acarretem na busca pelo aperfeiçoamento genético da raça humana, ou seja, pela afirmação da doutrina eugênica.

“A eugenia está baseada na ciência que investiga os métodos pelos quais a composição genética dos seres humanos pode ser aperfeiçoada.” O termo eugênico – bem nascido – foi cunhado por Francis Galton, o qual é considerado o pai da pesquisa moderna para melhorar a raça humana (VARGA, 1990, p. 77).

Através de seu livro “Gênio Hereditário: uma pesquisa a respeito de suas leis e conseqüências” (1869), Francis Galton e seus seguidores “afirmaram que a seleção natural não se realiza mais nos seres humanos, porque as instituições de caridade e os governos protegem os fracos, os doentes, os incapazes que sobrevivem para propagar a sua espécie.” No seu entender tal circunstância acarreta na decadência da raça humana, razão pela qual difundia a necessidade de que tal declínio fosse interrompido, “impedindo a propagação dos degenerados, dos fracos mentais, dos alcoólatras, dos criminosos, isto é, de todos os elementos indesejados na sociedade” (VARGA, 1990, p. 77).

Para tanto, Francis Galton defendia a idéia de que os governos deveriam proibir “casamentos entre pessoas inferiores, separando-as da sociedade e esterilizando-as mesmo
contra a sua vontade.” Por via de conseqüência, as raças superiores deveriam ser “encorajadas e ajudadas a propagar sua própria espécie e, assim, melhorar a raça humana” (VARGA, 1990, p. 77).

A justificativa do pensamento eugênico se funda na “proteção da espécie humana (ou sua sobrevivência)” e na “melhora das condições sociais do ser humano e da coletividade” (CASABONA, 1999, p. 170).

A Eugenia, ciência que estuda as condições mais propícias para o melhoramento da raça humana, pode distinguir-se em duas espécies, de acordo com o objetivo que se propõe: a eugenia negativa e a positiva. A eugenia negativa busca extirpar os defeitos genéticos, através da esterilização ou recolhimento dos defeituosos em instituições fechadas, impedindo a transmissão de defeitos genéticos. Ressalta Andrew C. Varga (1990, p. 78) que no início do movimento foi proposta a esterilização forçada, porém eugenicistas modernos são a favor da informação e da persuasão. Ou seja, aplicam-se meios de “seleção genética, através da qual as pessoas podem descobrir se são portadores de genes defeituosos, permitindo-lhes decidir a se absterem de procriar, para impedir o nascimento de filhos defeituosos.”

A eugenia positiva conclama a reprodução de “pessoas sadias” ou de “qualidade superior” e ainda a criação de “traços desejáveis” (VARGA, 1990, p. 78). A eugenia positiva pode ser conseguida buscando encorajar a reprodução entre seres humanos “superiores”, através dos métodos de reprodução artificial, através de manipulações genéticas sem fins terapêuticos ou até mesmo através da clonagem de seres humanos.

Acima se demonstraram as possibilidades decorrentes da terapia gênica, porém, agora, ressalta-se o perigo da eugenia positiva decorrente dessa espécie de terapia:

Existe a terapia somática, que afeta apenas a pessoa que está sendo tratada, e a terapia germinal, que implica mudanças que podem passar às gerações futuras. Até o momento, todos os esforços na terapia genética em seres humanos se concentram nas células somáticas. O grande receio é que, se a terapia genética somática em seres humanos for aceita pela medicina, haverá fortes motivos para estender a terapia genética também às células germinativas. Embora as terapias de células germinativas e de zigotos sejam muito promissoras para o futuro, as incertezas técnicas, o abuso da tecnologia do DNA para fins não-terapêuticos levantam sérias questões éticas acerca de nossa relação com a posteridade. Técnicas de junção de genes podem ser usadas para eugenia positiva a fim de mudar as características básicas da natureza humana em vez de para curar desordens cromossômicas. Podem, além disso, tornar-se um instrumento de malevolência tirânica que manipule seres humanos para fins políticos e sociais. (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2000, p. 214)

O movimento eugênico se desenvolveu em dois estágios. No primeiro estágio as idéias eugênicas baseavam-se em um conhecimento escasso da hereditariedade. A partir do conhecimento gerado pelas Leis da Hereditariedade de Mendel o movimento eugênico aparentemente se fundava numa base científica. “A segunda fase do movimento eugênico começou com o rápido desenvolvimento da microbiologia e genética molecular, após a II
Guerra Mundial” (VARGA, 1990, p. 79). Conforme se verificará no item seguinte, o movimento eugênico e essa pseudo-cientificidade deu azo a acontecimentos aterrorizantes e bárbaros e até hoje o tema da eugenia ainda não foi superado (WINNACKER, 1998, p. 220-221).

Demonstrando certa expansão desses ideais, Carlos María Romeo Casabona (1999, p. 174-176) salienta que “as descobertas modernas sobre o genoma humano e o aperfeiçoamento e ampliação das técnicas de reprodução assistida já abriram uma enorme potencialidade instrumental para o pensamento eugênico”.

No mesmo sentido, Elio Sgreccia (2002, p. 244) ressalta que um dos mais importantes problemas relacionados ao conhecimento decorrente do Projeto Genoma Humano é a possibilidade de aplicação mais ampla do diagnóstico pré-natal com finalidade eugênica. E acrescenta que ao ser possível se conhecer “mais amplamente na fase pré-natal genes doentes e sujeitos portadores deles, a tendência de eugenia pode receber uma aplicação maior.”

Analisando, ainda, a expansão do uso dos testes genéticos e, conseqüentemente, das informações deles advindas também se pode prever a sua utilização com claro intuito eugênico e discriminatório.

Contudo, a ciência comprova que tais idéias eugênicas são infundadas. Veja-se, o determinismo genético se olvida da influência marcante do ambiente na determinação do fenótipo, ou seja, na aparência, na estrutura do indivíduo em um determinado momento. Ou
seja, as características externas não são, como já dito, somente afetadas pelo genótipo, mas sim é conseqüência da interação entre o genótipo e o meio ambiente.

Portanto, as idéias difundidas pelo determinismo genético ou biológico não passam de considerações sem qualquer respaldo científico, sendo muitas vezes usadas como “uma lamentável tendência de mobilizar as forças da biologia a serviço da ordem vigente” (WILKIE, 1994, p. 203-204).

Neste sentido Eliane S. Azevedo (1999, p. 8) ensina:

Tanto para qualquer característica como para doenças, os genes agem em complexa interação com o ambiente. Em outras palavras, não existe determinismo genético. Até mesmo nas doenças primariamente dependentes da presença de genes, estes são necessários, mas não suficientes para causá-las. A genética clássica apresenta dois fenômenos fundamentais na relação entre genes e seus efeitos: “penetrância” e “expressividade”. Ser portador de um gene relacionado à determinada doença não significa a certeza de vir a tê-la: o gene pode jamais se manifestar, isto é, não apresenta “penetrância”. E, em se manifestando, poderá fazê-lo com intensidade ou “expressividade” variável.

Analisando detidamente os fundamentos do determinismo genético e da eugenia, verifica-se que a eugenia negativa que conclama a eliminação dos defeitos genéticos não se impõe porque “as mutações ocorrem sempre de novo; mal elas foram eliminadas em um lugar, elas aparecem de novo em outro.” Ressalta, ainda, Ernst-Ludwig Winnacker (1998, p. 222)
que, além disso, os genes defeituosos são extremamente difundidos na população humana, sendo que todos nós somos portadores de cópias avulsas, ocorrendo a irrupção de uma doença genética quando há a conjunção de duas cópias defeituosas, uma vinda do pai e outra da mãe.

Por isso Ernst-Ludwig Winnacker evidencia que a busca pela eugenia negativa, através da eliminação dos genes defeituosos, somente se concretizaria se toda a espécie fosse atingida. Portanto, “a eugenia negativa não pode ser um instrumento sensato de estratégia coletiva para o afastamento de genes defeituosos do pool de genes humanos.” Sendo que, “nesse sentido ela carece de qualquer fundamento científico” (2002, p. 222, grifo do autor).

Isso também acontece com a eugenia positiva: a busca pelo melhoramento da espécie por meio de medidas de reprodução. Como bem adverte Ernst-Ludwig Winnacker (2002, p. 223), a espécie humana é de uma composição genética extremamente heterogênea, sendo que cada indivíduo da espécie humana “possui a sua própria constelação genética, de sorte que transplantes não são possíveis (exceto em gêmeos univitelinos).”

Neste sentido, Tom Wilkie (1994, p. 208) ressalta que “biologicamente, a espécie humana se beneficia da diversidade, em parte em razão do que é por vezes chamado de ‘vigor híbrido’, mas sobretudo [sic] porque a diversidade representa um valioso fundo de genes a que se pode recorrer quando, por exemplo, surge uma nova doença.”

E continua:

uma visão demasiado estreita, a genética, tal como aplicada aos seres humanos, parece enfatizar as diferenças entre os membros de uma sociedade humana. Em termos biológicos, porém, essas diferenças são vantajosas para a sobrevivência geral da espécie, pois a seleção natural não atua apenas para assegurar a sobrevivência dos indivíduos mais aptos numa população. Herbert Spencer seguiu a trilha errada ao cunhar sua frase sobre a ‘sobrevivência dos mais aptos’, e os darwinistas sociais estavam errados não só em sua política como também em sua biologia. É necessário considerar as implicações da genética para a população como um todo, e não apenas para os indivíduos dentro dela. A evolução promove um equilíbrio entre a aptidão imediata e a flexibilidade genética a prazo mais longo. A seleção natural, combinada com os padrões mendelianos de hereditariedade, tende a manter certo grau de flexibilidade genética nas grandes populações – há uma concentração em torno da média, mas os extremos de variação raramente se perdem. Essa tendência a conservar a diversidade fornece a matéria-prima sobre a qual a seleção natural pode operar, e constitui uma fonte mais importante de variação do que as mutações benéficas, relativamente escassas, que podem ocorrer aleatoriamente nos genes. Se o meio ambiente mudar – se surgir uma nova doença –, a seleção natural empurrará a média numa direção ligeiramente diferente, pois os indivíduos que por acaso tiverem uma resistência um pouco maior ou total à doença tenderão a ter mais chances de sobrevida e de procriação. Para o geneticista, a diversidade dentro de nossa espécie é algo a ser valorizado.
(WILKIE, 1994, p. 208).

Portanto, o que para alguns pode ser considerado motivo para discriminação – a variedade genética da espécie humana – para a sociedade como um todo, em especial para as futuras gerações, é de extrema importância.

Porém, sabe-se que, em que pese tais circunstâncias científicas, a história nos relata que tais perspectivas eugênicas e/ou deterministas foram e ainda serão usadas como fundamento de várias práticas discriminatórias, conforme se verificará a seguir.

---
É isso!

Fonte:
GISELE ECHTERHOFF: “O DIREITO À PRIVACIDADE DOS DADOS GENÉTICOS". (Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito Econômico e Social da Pontifícia Universidade Católica do Paraná como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. Orientadora: Prof.ª Drª Jussara Maria Leal de Meirelles). PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PARANÁ. CURITIBA, 2007.

Nota:
A imagem inserida no texto não se inclui na referida tese.