Eu li isso...


“Para Dawkins, a evolução é uma batalha entre genes, cada um procurando fabricar mais cópias de si mesmo. Os corpos são apenas os lugares onde os genes se agregam por algum tempo, são receptáculos temporários, máquinas de sobrevivência manipuladas pêlos genes e descartadas para o lixo geológico, tão logo se tenham reduplicado e mitigado sua sede insaciável de mais cópias de si mesmos nos corpos da geração seguinte:
Somos máquinas de sobrevivência — veículos robotizados, cegamente programados para preservar as moléculas egoístas conhecidas como genes...
Eles pululam em enormes colónias, em segurança no interior de pesados e gigantescos robôs... estão em vocês e em mim; eles nos criaram, corpo e mente; e sua preservação é a razão última para a nossa existência.
[...]
"Dawkins sabe tão bem quanto vocês ou eu que os genes não planejam nem esquematizam; não atuam como agentes argutos da sua própria preservação. Dawkins está apenas perpetuando, de maneira mais colorida, uma estenografia metafórica usada (talvez insensatamente) por todos os escritores populares que escrevem sobre a evolução, incluindo eu próprio (embora moderadamente, espero).

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”Todavia, há uma falha fatal no ataque de Dawkins. Não importa quanto poder queira atribuir aos genes, uma coisa não lhes pode imputar — visibilidade direta da seleção natural. A seleção simplesmente não pode ver os genes e escolher diretamente entre eles; ela tem de usar os corpos como intermediários. O gene é um pedaço de DNA escondido no interior da célula. A seleção vê os corpos, favorece alguns deles porque são mais fortes, melhor isolados, são mais precoces na sua maturação sexual, ferozes em combate ou mais bonitos de se olhar”.

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“Não há nenhum gene "para" esses pedaços inequívocos de morfologia, como sua rótula esquerda ou suas unhas. Os corpos não podem ser atomizados em partes, cada uma delas construída por um gene individual. Centenas de genes contribuem para a construção de muitas partes do corpo, e sua ação é canalizada através de uma série caleidoscópica de influências ambientais: embrionárias e pós-natais, internas e externas. As partes de um corpo não são genes traduzidos, e a seleção nem sequer trabalha diretamente sobre elas.

[...]

“Dawkins precisará de outra metáfora: genes conspirando, formando alianças, mostrando deferência por uma hipótese de se juntarem num pacto, aferindo os ambientes prováveis. Mas, quando amalgamamos tantos genes e os ligamos em cadeias hierárquicas de ação mediadas por ambientes, chamamos o objeto resultante de corpo”.

[...]

“Penso, em resumo, que o fascínio gerado pela teoria de Dawkins é fruto de alguns maus hábitos do pensamento científico ocidental — das atitudes (perdoem-me o jargão) que denominamos atomismo, reducionismo e determinismo: a ideia de que os todos podem ser compreendidos por decomposição em unidades "básicas"; de que as propriedades das unidades microscópicas podem gerar e explicar o comportamento de resultados macroscópicos; de que todos os acontecimentos e objetos têm causas previsíveis, definidas e determinadas. Essas ideias têm sido eficazes no estudo de objetos simples, constituídos por poucos componentes e sem a influência de uma história anterior. Tenho absoluta certeza de que meu fogão se acenderá quando eu o ligar (e acendeu).
"As leis dos gases, construídas a partir das moléculas, levam-nos até as propriedades previsíveis de volumes maiores. Mas os organismos são muito mais do que amálgamas de genes. Têm uma história que não podemos desprezar; suas partes interagem de maneiras complexas. Os organismos são construídos por genes atuando em concerto, são infuenciados pêlos ambientes e traduzidos em partes que a seleção vê e partes que ela não vê. As moléculas que determinam as propriedades da água constituem uma pobre analogia dos genes e dos corpos. Posso não ser o senhor do meu destino, mas minha intuição da totalidade provavelmente reflete uma verdade biológica."

Fonte:
Stephen Jay Gould. “O Polegar do Panda. Editora Martins Fontes . São Paulo, 1989, p. 77, 78.

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